Este é um Relatório produzido pela organização Indigenous Peoples Rights International (IPRI) em parceria com a Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (APIB), no âmbito do projeto de “Apoio a uma iniciativa global para abordar e prevenir a criminalização e a impunidade contra os povos indígenas” (Support for a global initiative to address and prevent criminalization and impunity against indigenous peoples).
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) é uma instância de aglutinação e referência nacional do movimento indígena no Brasil, tendo sido criada em 2005 durante a mobilização anual em Brasília, conhecida como Acampamento Terra Livre (ATL). Em sua missão está a promoção e defesa dos direitos indígenas, por meio da articulação e união entre os povos e organizações indígenas das distintas regiões do país.
Aglutinando organizações locais e regionais indígenas, a APIB atua no fortalecimento da união de nossos povos, na articulação entre as diferentes regiões e organizações indígenas do país, na unificação das lutas dos povos indígenas (pauta de reivindicações, demandas e a política do movimento indígena) e na mobilização dos povos e organizações indígenas contra as ameaças e agressões aos direitos dos povos indígenas.
O movimento indígena articulado pela APIB reivindica ante o Estado Brasileiro, sobretudo, o atendimento de demandas fundamentais para a democracia como o cumprimento de convenções e declarações internacionais de direitos humanos dos povos indígenas e meio ambiente, bem como a implementação das garantias de direitos reconhecidos nacionalmente. A exemplo, destacamos o direito à autodeterminação e à consulta livre, prévia e informada, a titulação jurídica e proteção das terras indígenas, implementação efetiva de políticas públicas diferenciadas (saúde, educação, gestão territorial e sustentabilidade), além de mecanismos eficazes para a participação e controle social pelos povos indígenas.
Em sua estrutura, a APIB conta como instância superior o Acampamento Terra Livre (ATL), que trata da maior mobilização indígena nacional, reunindo anualmente em Brasília, capital do Brasil, milhares de lideranças de todas as regiões do país, sob coordenação dos dirigentes das organizações indígenas regionais. O ATL vem permitindo o intercâmbio de realidades e experiências distintas, a identificação dos problemas comuns, a definição das principais demandas e reivindicações, e a deliberação sobre os eixos programáticos e ações prioritárias da APIB.
Atualmente a APIB mantem representação em todos os estados brasileiros através das organizações regionais que a compõe, entre elas: Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), Conselho do Povo Terena, Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (ARPINSUDESTE), Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ARPINSUL), Grande Assembleia do povo Guarani (ATY GUASU), Coordenação das Organizações indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e Comissão Guarani Yvyrupa (CGY).
A APIB e o IPRI, nessa parceria, se juntaram na produção de um material para contribuir com a documentação e o monitoramento da criminalização de indígenas no Brasil, incentivando ações capazes tanto de impedir novas criminalizações, como se tornarem aptas a protegerem as lideranças indígenas que se encontram nessa situação.
Nessa última década, de fato, diversos estudos e relatórios produzidos por diferentes organizações da sociedade civil, nacional e internacionalmente, vêm alertando sobre a escalada da violência contra os povos indígenas no Brasil. Ao denunciarem as violências e violações de direitos humanos dos povos indígenas, revelam constantemente as marcas deixadas na sociedade brasileira pela colonização e pela escravidão que atravessaram os séculos e, ainda hoje, seguem presentes, inclusive, nas estruturas do Estado.
O levantamento de dados sobre a atual situação de violência contra povos indígenas é tarefa complexa que encontra inúmeros obstáculos. Há algumas décadas, organizações da sociedade civil atuantes nas questões indígenas no Brasil, como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (CBDDDH), entre outras, vêm reportando com periodicidade o progressivo aumento de crimes praticados contra indígenas (como homicídios, ameaças, invasões e danos a patrimônios, por exemplo), além de óbitos decorridos tanto da ausência de políticas públicas efetivas, quanto de ataques de grupos paramilitares ou mesmo instituições estatais. A sistematização desses dados variam e se esforçam para superar a subnotificação, o atraso na divulgação dos dados públicos e a própria invisibilidade dos povos indígenas nas estatísticas, entre outras dificuldades comumente descritas que buscam camuflar e invisibilizar uma trágica realidade.
De suas leituras se depreende que os conflitos fundiários, homicídios, práticas de tortura, invasões de casas e territórios, roubos de documentos, assédio moral e coletivo, de ofensivas de milícias armadas e ataques em mídias sociais contra indígenas estão sendo potencializados em sua violência. Em suas múltiplas dimensões e como meio de silenciamento coletivo contra a insurgência ante essas injustiças, o racismo anda junto a outros fenômenos, como aumento expressivo de indígenas encarcerados no sistema penal brasileiro, o desmantelamento das instituições e da política pública indigenista, a paralisação dos procedimentos de reconhecimento jurídico das terras indígenas, a perseguição política e o assédio no exercício da participação social. A exemplo do mencionado, entre os anos 2005 a 2019, a população indígena encarcerada aumentou em 500%, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça e Segurança Pública (DEPEN/MJSP), do Governo Brasileiro (INFOPEN, 2005-2019).
Até o momento, esses estudos vêm contribuindo de forma significativa para quantificar e qualificar os tipos de violações de direitos humanos que os povos indígenas experimentam corriqueiramente em muitas regiões do país, sejam individuais ou coletivas. A crescente visibilidade para além das fronteiras brasileiras das causas e situações que caracterizam essa violência e, sobretudo, da vocalização das denúncias por representantes indígenas vêm possibilitando um maior acúmulo de dados, informações e estudos sobre esses problemas. Num país com dimensões continentais como o Brasil, é importante conhecer não somente as diferenças e as similaridades com que essas situações são vivenciadas, como, também, reconhecer a potencialidade com que determinadas ações podem influenciar em cada contexto.
Para além dos números, é fundamental também que sejam narradas as atividades em defesa de direitos, muitas das quais decorrem no acúmulo de mais violações. Assim, é preciso conhecer as vítimas, com a extensão de suas consequências aos sobreviventes dessas violações (e aqui incluímos também os familiares e as comunidades), bem como suas necessidades e as propostas para superar essa condição de vulnerabilidade a que estão submetidos. Se é verdade que as ações de enfrentamento a essa realidade dependem da participação de inúmeros atores, também o é que a qualificação dessas ações só virá efetivamente a ocorrer se construída pelos e com os povos indígenas.
O propósito deste Relatório é evidenciar um padrão de criminalização e assédio no contexto brasileiro que atuam no silenciamento dos povos indígenas ao atuarem na defesa de seus direitos coletivos, apresentando, ao final, ações efetivas e recomendações de estratégias para a proteção à vida de lideranças indígenas, familiares e, em alguns casos, de suas comunidades. Nesse sentido, tratar da situação de criminalização e assédio de lideranças indígenas pressupõe reunir as causas e a intensidade das violências e violações identificadas, e, principalmente, identificar um arcabouço de respostas e possibilidades de atuação conjunta com aqueles que estão a sofrer (sempre, aqui, considerando a extensão ao coletivo).
Diante disso, constituem como objetivos específicos deste Relatório demonstrar como o exercício e a participação social dos povos indígenas na construção de sua autodeterminação e autonomia tem sido negado, como se reproduzem no contexto brasileiro as violações de direitos individuais na luta pela defesa dos direitos coletivos e da natureza (compreendida aqui nas noções do direito à terra, territórios e recursos naturais), como as comunidades indígenas têm se organizado na garantia de segurança e como materializam ações estratégicas para a superação dessa realidade.
Não foi o objetivo deste Relatório exaurir os casos de lideranças indígenas criminalizadas ou em situação de assédio no Brasil, uma vez que esse é um dos países que mais persegue defensores de direitos ambientais, dentre os quais os indígenas se inserem. Ao invés de produzir dados estatísticos, o que se buscou foi aprofundar a divulgação de casos específicos, complexos e preocupantes de criminalização e assédio de lideranças indígenas que ensejam monitoramento.
Além disso, importa destacar que o Relatório conta com uma abordagem ampliada da noção de criminalização. A partir da perspectiva trazida pelos indígenas entrevistados, se procurou conferir sentido mais abrangente, não meramente técnico penal, para incorporar o assédio, a privação de direitos e a negação de identidade, dentre outras formas de acossamento aqui incluídas a fim de demonstrar a extensão de seus efeitos.
Cumprindo com os objetivos propostos, em sua estrutura, a primeira parte deste relatório apresenta a metodologia aplicada à pesquisa e descreve o que é ser lideranças indígenas no contexto brasileiro atual. Consecutivamente, são identificados estudos de casos de criminalização e assédio de lideranças indígenas, alguns padrões de criminalização e assédio extraídos a partir dos casos relatados e, por fim, orientações de ações que possam influir positivamente no enfrentamento dessa situação no país para os próximos anos. Nessa última parte, são relatadas boas práticas em exercício, e recomendações para proteção individual, coletiva e sensibilização institucional.